Fala de “uma vida cheia”, no período de tempo em que viveu na Ucha, até 1979, ano em que trocou a freguesia barcelense pelo Porto. Na bagagem, levava já a experiência no teatro amador – na Ucha, freguesia onde nasceu, e n’ “A Capoeira” – e cursos na área do Teatro que entretanto fizera. E, naquela que via como a “cidade grande”, colaborou com diversas instituições e companhias de teatro (como Pé de Vento, TEAR, Teatro do Bolhão, entre outras) e co-fundou a Academia Contemporânea do Espectáculo, em 1991.
Interpreta o papel de Dr. Freitas, na novela “Mulheres”, da TVI. Antes disso, porém, já deu voz ao Cocas, foi Abraão, vestiu a pele do inspector Rui e de tantas outras personagens. Das dobragens às telenovelas e cinema, fez de tudo um pouco, incluindo formação. Tudo acaba, porém, por desaguar no teatro, “a base”, diz. Ou, como escrevera Almada Negreiros, “o escaparate de todas as artes”.
Actualmente, Jorge Mota é actor, encenador e director artístico da actoUnico – criação e investigação artística e membro da Direcção do CETUP – Centro de Estudos Teatrais da Universidade do Porto. Se não tivesse sido actor, o gosto pela pintura tê-lo-ia feito pintor. Em mãos, tem agora um projecto para fazer na Rota do Românico: o ‘Rei Lear’, de Shakespeare, para estrear em finais de Outubro.
No ano em que faz 35 anos como actor profissional, Jorge Mota recorda o passado em Barcelos, o percurso na representação e reflecte sobre o estado actual do teatro.
Completa este ano 35 anos como actor profissional. É inevitável perguntar-lhe quando é que tudo começou. Na infância e juventude, nas brincadeiras com os colegas?
Sim, acho que foi aí, mas sem nunca o perspectivar em termos profissionais e que viria a ser tão importante para a minha vida. Nas férias escolares, juntávamo-nos e fazíamos teatro, para matar o tempo e também porque nos divertíamos bastante. Com o 25 de Abril de 1974, os nossos horizontes abriram-se e começámos a olhar para as coisas de outra forma e com outros olhos – sim, porque só aí é que nós, aquele grupo de jovens, começámos a ter alguma consciência política – e criámos o Círculo de Arte, Recreio e Promoção Associativa (CARPA). As actividades deste Círculo eram o Ciclismo, o Ping-Pong, sessões de cinema que exibíamos no antigo salão paroquial e, naturalmente, o Teatro, agora de uma forma muito mais regular e com um sentido mais interventivo no tecido social, sem perder, naturalmente, o seu lado lúdico. Era desta forma que nós cumpríamos o nosso dever para com a sociedade. Nós éramos um grupo de jovens muito interessante, mas só fomos para a frente com isto porque tínhamos connosco o Fernando Pinheiro. Ele era o nosso grande líder, o nosso mentor, e tínhamos por ele uma enorme estima e admiração. Naquela altura, as coisas eram bem diferentes do que são hoje. Havia muito a fazer. A maior parte dos adolescentes da nossa aldeia tinha como saída para os seus tempos livres o tasco, a sueca (jogo de cartas), uns copos e pouco mais. Repetiam, de certa forma, a vida dos seus pais, que, a meu ver, era muito pobre culturalmente. A partir do momento em que tomámos consciência desta realidade, caiu-nos nas mãos a enorme responsabilidade de fazer alguma coisa por essas pessoas, pelo nosso “meio”. E o Teatro pareceu-nos uma óptima forma de intervir e de crescermos juntos.
Sentiam receptividade por parte das pessoas?
Claro que sentíamos. Mas nem por isso tivemos a vida facilitada. Há sempre alguém que acha que as coisas estão muito bem como estão e que se assusta muito com mudanças. Essas pessoas não viam com bons olhos o que nós estávamos a fazer e, como tinham poder, intervinham à sua maneira, fechando-nos, por exemplo, o salão paroquial, para que nós não pudéssemos desenvolver as nossas actividades. Cansados de tanta mesquinhez, decidimos ir para a cidade, para Barcelos. Foi nessa altura que nasceu o grupo de teatro amador “A Capoeira”. Um grupo de jovens revoltados e cheios de energia, vindos da Ucha, juntaram-se a outros jovens amigos da cidade e criaram “A Capoeira”. É verdade, foi assim. Como vê, não nos conseguiram baixar a crista. E, depois, havia em nós uma necessidade de emancipação, de termos vontade própria, de fazermos as nossas escolhas. A propósito de escolhas, sabia que o padre da Ucha dessa altura… 1975… 76… queria visionar os filmes, antes que os exibíssemos ao público, porque corria pela aldeia que, no último filme exibido, os protagonistas se beijavam?
É verdade! E, só por curiosidade, o filme em questão era o “Por quem os sinos dobram”, um filme que podia ser passado nos seminários. Foram belos tempos.
“QUANDO AS COISAS SÃO EXTREMADAS, QUANDO NÃO NOS DÃO ESPAÇO, A SAÍDA É, MUITAS VEZES, PELA REBELDIA”
Saiu da Ucha com 20 e poucos anos. Além dessas recordações, que outras guarda da Ucha e de Barcelos?
Guardo boas recordações e más também, como em tudo. As más são aquelas próprias dos meios pequenos, o quererem saber de tudo, o quererem meter-se em tudo, o haver duas ou três cabeças que pensam que podem pensar o mundo e as coisas pelos outros. Isso aborrecia-me profundamente e levou-me a tomar atitudes de alguma rebeldia. Quando as coisas são extremadas, quando não nos dão espaço, a saída é, muitas vezes, pela rebeldia, é abandonar as coisas.
Esse é o lado mau, digamos. E o lado bom?
Coisas boas?… Aquelas de que falei, próprias dos meios pequenos, o quererem saber de nós, o quererem… (risos) Estou a contradizer-me, não estou? Pois é, mas olhe que são praticamente as mesmas coisas que me incomodam em certas ocasiões e noutras me dão uma grande felicidade. Amo e odeio a minha terra, eis a questão. O problema só pode estar em mim. Deve depender muito do meu estado de espírito.
Que ligações mantém ainda hoje a Barcelos e em particular à Ucha?
Tenho lá pessoas amigas. E ainda andam por lá o perfume da minha adolescência, os meus gritos de criança, os ecos das minhas paixões. E os meus pais estão lá, fundidos naquela terra, que, só por isso, agora ainda é mais minha.
“SE ENTRAS NUMA NOVELA, ÉS ACTOR. SE NÃO ENTRAS… NÃO FOSTE VISTO… NÃO ÉS!”
Profissionalmente, fez e faz teatro, séries, dobragens, novelas, formações, uma série de coisas. É quase um homem dos sete ofícios…
Não me considero um homem dos sete ofícios. Passei por várias coisas, sim, mas todas muito próximas, muito ligadas ao teatro. O teatro é a base, o sítio, e é aí que eu me sinto e que tento estar sempre. É a partir daí que as outras coisas vão surgindo. Não quer dizer que não me tenha, uma ou outra vez, descentrado. Mas isso foi por razões de contexto e do próprio país. Em meados dos anos 80, o teatro no Porto sofreu um forte revés. Felizmente que, por essa altura, a RTP decidiu alargar as dobragens ao Centro de Produção do Porto e eu acabei por passar bastante tempo da minha vida a dirigir dobragens. Mas, nem aí, eu deixei de fazer teatro. Fazia menos, claro, mas fazia.
Também dei aulas de teatro, mas isso penso que, a partir de uma determinada altura, é inevitável que o façamos. Mau é quando somos obrigados a dar aulas para viver. A minha primeira experiência nessa área foi em Barcelos, no Liceu, meses antes de vir para o Porto trabalhar como actor.
Disse que o teatro é a base da sua vida profissional. Como é que definiria o teatro?
É uma estrela com sete pontas. É qualquer coisa que não faz sentido se não for vista. Não há forma que o guarde, não tem idade e acaba quando existe. Bom, isto parece uma charada, mas é verdade. Enquanto as outras artes necessitam de um suporte que as faz perdurar no tempo, tornando-as relíquias, por vezes valiosíssimas, o teatro vive com as pessoas e esfuma-se no tempo em que é feito. Apenas perdura na memória de quem o viveu e foi alvo das suas emoções.
O teatro é o princípio de tudo, no fundo. Mas creio que concorda que foram as novelas que o trouxeram ao conhecimento do grande público. Ou não?
Sim, de certa forma. Quem me vai ver ao teatro conhece-me. Mas é um público muito restrito, porque o teatro não tem essa capacidade de chegar a centenas de milhares de pessoas com uma só representação. Isso é um fenómeno que acontece com a televisão. As pessoas dão-lhe muito valor e então se apareces na televisão, se entras numa novela, és actor. Se não entras… não foste visto… não és! Deves ser um estagiário.
“[HÁ 35 ANOS,] O TEATRO TINHA UM LADO MUITO MILITANTE E COM UM SENTIDO SOCIAL E CULTURAL MUITO GRANDE”
As companhias de teatro têm de viver. Numa altura de cortes e em que tanto se fala da redução de financiamento, como é que se faz teatro?
É muito difícil. Há aqui questões que necessitam ser reflectidas e resolvidas por parte de todos os intervenientes, por exemplo, saber se será possível fazer teatro profissional sem subsídios e como manter a liberdade de criação junto dos financiadores. O teatro, e as artes em geral, têm de ser livres, têm de nascer para a liberdade, não é verdade? O que eu quero dizer com isto é que as artes só fazem sentido se estiverem ao serviço da humanidade, se nos ajudarem a sermos mais iguais a nós próprios e a criar universos solidários com a diferença. Este entendimento pressupõe políticas e orçamentos que nada têm a ver com crescimentos económicos. É preciso acabar com algumas confusões que andam para aí e que tentam meter no mesmo saco Arte e Indústrias criativas. Se calhar podem existir as duas, mas convém que as saibamos distinguir, para podermos pensar subsídios ou financiamentos. Mas tinha-me perguntado como é que se faz teatro nestas condições tão adversas? Bom, só se pode fazer menos do que se fazia antes. Há quem tente tapar o sol com a peneira, dizendo que, apesar das reduções de financiamento, conseguiram elevar todos os índices relativamente a anos anteriores, mas não acredito que isso possa ser verdade. Olhe, por exemplo, o Teatro Nacional de S. João, que durante anos teve um elenco “mais ou menos residente”, do qual eu fiz parte, e que, devido às reduções do seu financiamento, foi obrigado a acabar com esse elenco e a reduzir em muito a sua produção própria, descaracterizando-se, um pouco até, como Teatro Nacional. Felizmente, tem à sua frente como Director Artístico, uma pessoa como o Nuno Carinhas, cuja sensibilidade e bom gosto, e sentido de solidariedade para com as pequenas companhias de teatro do Porto, tem conseguido, com a sua programação, que não se sinta muito os efeitos dos cortes.
Que diferenças sente no teatro que se fazia há 35 anos, quando começou profissionalmente, e agora?
Bom, as coisas evoluem… Às vezes evoluem para trás, não é? O que eu quero dizer é que muitas vezes temos de arrepiar caminho, porque chegámos à conclusão de que andámos por caminhos errados.
E andámos?
Andámos… Quer dizer… Eu acho que andámos. E, se calhar, ainda andamos. Mas a verdade é que os caminhos fazem-se assim, em dois sentidos, para a frente e para trás. Quando digo arrepiar caminho, quero dizer voltar à origem, ao início, voltar à essência. Com o aparecimento da fotografia, a pintura precisou de descobrir qual era o seu próprio caminho…
O mesmo aconteceu com o teatro em relação ao cinema.
Exactamente! Mas, a pergunta era que diferenças sinto do teatro que se fazia há 35 anos… Bem, nessa altura, o teatro em Portugal tinha um lado muito militante e com um sentido social e cultural muito grande. Era, de uma forma geral, um teatro com objectivos culturais e muito interessado na mensagem.
Hoje não é tanto assim?
Hoje não. Hoje pode pensar-se como objecto artístico, no seu todo, sem esse lado de formação social.
Esteve envolvido na criação das primeiras escolas profissionais de teatro, suponho que entenda a formação como algo importante.
Fundamental. O nosso País apoiou sempre muito pouco o teatro e, se recuarmos no tempo, verificamos que a formação nesta área também era muito reduzida. Durante muito tempo, a única escola que tínhamos era o Conservatório Nacional de Lisboa, apenas para actores, e cuja formação era de nível superior. Mas nem todos tinham a possibilidade de ir para o Conservatório e, por isso, na sua maioria, a formação dos actores era feita nas tábuas, no palco, com a experiência, era feita na vida. Há muitos actores – grandes actores – que o fizeram assim. Mas atrevo-me a dizer que, se esses actores tivessem tido, na altura própria, a possibilidade de iniciar a sua formação de actor numa escola de teatro, teriam sido ainda maiores. Mas, quando se fala de formação na área do teatro, estamos a falar também de encenadores, desenhadores de luz, desenhadores de som, cenógrafos, figurinistas, directores de cena e de produção, áreas muito importantes para a criação do espectáculo de teatro, mas que só muito recentemente viram configurados os seus perfis profissionais e de formação.
Gostava de representar no Teatro Gil Vicente?
Gostava. O Gil Vicente foi sempre um teatro com o qual eu nunca perdi o contacto. De longe, aqui no Porto, acompanhei sempre de perto todas as vicissitudes por que foi passando, desde as tentativas de o transformar num centro comercial até à sua famigerada inauguração. Chegámos a representar lá, com “A Capoeira”, no velhinho Gil Vicente. Foi um orgulho nessa altura, estávamos a pisar o palco mais prestigiado da cidade. Mas que tinha uma coisa horrível, era inclinadíssimo. Tinha uma inclinação fora do normal.
Em off, disse que a vida é um problema. Como resolvê-lo?
Enfrentando-o. É a única forma. Não podemos fugir aos problemas.
É também isso que faz em palco?
Claro! É assim que temos de fazer em todos os palcos. Fugir não é solução.
| Entrevista publicada na edição n.º 189 (III Série) do Jornal de Barcelos, a 27 de Agosto de 2014 |
*Foto: João Tuna | TNSJ