É uma reportagem quase no feminino. Desde logo porque, indicam os números, a violência é exercida sobretudo sobre mulheres. São elas, pelo menos, quem mais procura ajuda e apresenta queixa nas autoridades competentes. A violência doméstica, apesar desta tendência, é um problema transversal à sociedade, que afeta quer mulheres, quer homens. Estes, porém, inibem-se mais na altura de pedir ajuda.
Vamos chamar-lhe “Maria”. Tem 49 anos e esteve casada durante 31. É mãe de dois rapazes e de uma rapariga. Saiu de casa em maio deste ano.
O namoro foi breve, passavam pouco tempo juntos e casaram, a um mês de ela fazer 18 anos. “Maria” queria libertar-se dos problemas com a mãe, procurava «uma vida melhor». Nos primeiros tempos do casamento, conta, «não foi assim muito mau». Depois, após o nascimento do primeiro filho, «as coisas começaram a piorar». «Ou tinha ciúmes de uma pessoa se dedicar mais ao filho… e começou sempre a desconfiar de tudo, de todos, eu não podia falar para ninguém nem ir a lado nenhum. Tinha muitos ciúmes e controlava-me o dinheiro, ia revistar as minhas bolsas todas, os casacos, foi sempre assim», resume “Maria”.
«EU NUNCA TIVE CORAGEM»
Hoje, “Maria” reconhece que pediu ajuda «muito tarde». E explica: «Tinha os meus filhos pequenos e dependia também muito dele [marido agressor]. Deixei de trabalhar quando nasceu o meu filho do meio… Mas as coisas começaram a piorar, sempre, sempre. Só que eu nunca tive coragem, porque os meus filhos eram muito novinhos».
A coordenadora do Grupo de Ação Social Cristã (GASC), Célia Barbosa, considera que ter filhos «ainda é, para muitas vítimas, considerado como um motivo que as deve manter na relação, de forma a que os filhos não sofram mais ao sair de casa». A psicóloga nota, no entanto, que se trata de um «mito», até porque «está provado claramente que o impacto da violência e mesmo que indireta – ou seja, não exercida diretamente sobre a criança, mas indiretamente, porque ela assiste à violência entre o casal –, traz muitas vezes consequências negativas para o seu desenvolvimento emocional». A psicóloga ressalva, porém, que «hoje em dia já se vai percebendo gradualmente uma ligeira mudança da compreensão disto», sobretudo quando a vítima reconhece que há uma dinâmica de violência, que estamos na presença de um crime e que as crianças também sofrem muito com esta situação.
A juntar aos filhos, poderá haver outras razões: a conjuntura económica – «a elevada taxa de desemprego acentuou algumas situações de dependência económica entre a vítima e o agressor», refere Célia Barbosa –, um «descredibilizar da Justiça e, muitas vezes, também a falta de apoio familiar», acrescenta a coordenadora do Projeto SOPRO Feminino da Associação SOPRO, Susana Oliveira.
Entretanto, chegou um ponto em que “Maria” não aguentou mais. «A minha filha já era maiorzinha e eu não aguentei mais. Teve de ser», recorda. A decisão, no entanto, teve um precipitador: o agressor dera-lhe um prazo máximo para sair de casa. «Como a minha vida andava muito má – como quem diz que cada vez as ameaças eram maiores –, eu disse que, quando arranjasse uma solução para a minha vida, que saía de casa. Só que eu nunca tinha a coragem». Dizia-o na esperança de que ele mudasse, que pensasse melhor. Porém, certa noite, o agressor deu-lhe até ao dia seguinte para sair de casa, mas, de repente, mudou de ideias: «Olha, não é amanhã, é já hoje. Sais já hoje pela porta fora». E assim foi: era meia-noite menos um quarto, quando “Maria” saiu de casa e pediu abrigo a uma amiga. «Estive lá 15 dias, mas ele encontrou-me e voltou a ameaçar que me matava e que me ia partir o carro», contou ao Obli.
Os episódios de violência por que passou, ao longo de 31 anos, eram sobretudo psicológicos e económicos. Ainda assim, foi agredida duas vezes, logo após o casamento. «Bateu-me duas vezes ao princípio, quando casamos», conta, resignada, «mas eu achava que aquilo era normal, que era uma chamada de atenção». Além disso, diz “Maria”, «a palavra “mato-te” era muito frequente», tal como ainda nos dias de hoje, apesar dos mais de 100kms que distam das suas moradas. E, se antes achava que as ameaças não passavam de ameaças, agora, confessa, «tenho muito medo»: «Sempre achei que era normal, que não ia fazer nada, mas agora eu vejo que ele é capaz de o fazer. Está descontrolado. Ele vai fazer uma asneira».
Susana Oliveira, do Projeto SOPRO Feminino, atenta que «o risco de morte aumenta, quando há separação». E explica: «A separação pode fazer com que os agressores se precipitem e que sintam que já não têm nada a perder».
Presentemente, longe de casa e dos filhos, “Maria” esbarra na intolerância do filho mais velho: «O meu mais velho não aceitava nem aceita e ainda agora está revoltado. Acho que ele tem muito a ideia do pai, é uma ideia assim antiquada: ele acha que não devia ter saído. O meu do meio dizia sempre “dá-lhe uma oportunidade, pensa bem no que vais fazer, porque viver sozinha é difícil, mas eu quero a tua felicidade. Segues a tua vida, o pai tem de seguir a dele”. A minha filha [é menor, ainda está com o pai], como viveu mais estas coisas todas, essa é contra eu voltar para casa». Importa talvez aqui realçar que a filha «presenciava muito» as cenas de violência, pois o agressor evitava os episódios de violência quando os filhos rapazes estavam em casa, mas não se coibia na presença da rapariga, a filha.
No entanto, da mesma forma que o agressor lhe deu um prazo para sair, deu-lhe também um para regressar a casa: 15 de dezembro. Dizia Maria que era para passarem o Natal juntos, a fingir que tudo estava bem e que, depois, previa ela, voltaria ao «pesadelo» de antes.
Recentemente ocorreu a primeira audiência para o divórcio.
«CEDI PORQUE NUNCA O TINHA VISTO CHORAR»
Chamemos-lhe “Adelaide”. Tem 60 anos e terminou, há quase quatro, um casamento que durara 35 anos.
Tinham um filho e o marido já não queria o segundo. Foi a partir daí que a relação entre ambos começou a agravar-se. Para trás, tinham ficado já alguns episódios negativos durante os dois anos em que haviam namorado e em que já tinha percebido que «ele era uma pessoa fria». «Ele foi sempre muito agressivo e nessas ocasiões, como eu o ultrapassava, no caso dos filhos ultrapassei a vontade dele, as coisas pioraram», conta “Adelaide”. Às vezes, recorda ao Obli, o ex-marido batia-lhe sem razão, do nada, desculpando-se depois com o dia de trabalho. Outras vezes, não havia qualquer diálogo, «não havia uma palavra».
Certa noite, num momento de tensão, “Adelaide” desabafara: «Eu só lhe disse “Olha, é triste eu ser a tua mulher e não saber onde trabalhas; não tenho um contacto, não sei nada». Incomodado, o marido terá pegado num objeto que “Adelaide” não sabe precisar e agrediu-a. «Em parte do meu corpo, fiquei toda negra», recorda. Não estando ainda satisfeito com o que já tinha feito, tentou incendiar a casa.
Amparada pelos sogros, que a apoiavam e intercediam por ela, foi ao hospital e fez uma queixa, que foi depois retirada. A esta distância, “Adelaide” percebe que se deixou iludir por um falso arrependimento: «Ele era muito agressivo; acho que ele encenou as coisas, porque ele chorou. Ele nunca chorava, era frio. Ele pediu perdão e tudo, claro que depois eu perdoei. […] Cedi porque nunca o tinha visto chorar. Foi a primeira vez».
DA AGRESSÃO À ‘SEDUÇÃO’
“Adelaide” não é caso único. A coordenadora do GASC, Célia Barbosa, refere que têm «algumas situações em que as pessoas vêm motivadas para sair da relação, mas depois as coisas vão mudando e a pessoa começa a ponderar que se calhar quer dar mais uma oportunidade». E, nota, há uma explicação: «Trata-se de uma dinâmica específica, que tem que ver com o ciclo da violência. E o ciclo da violência é composto por três fases: fase da tensão, da agressão e da lua de mel». De forma sintética, na tensão, «o ambiente em casa começa a ficar um pouco mais pesado; ou não falam, ou quando falam já é num tom diferente, implica-se por tudo e por nada, até que muitas vezes esta fase de tensão culmina num episódio de violência mais grave». É, muitas vezes, na fase da agressão – que não é exclusivamente física – que a vítima decide procurar ajuda. Contudo, é também depois, explica a psicóloga, que o agressor «toma consciência que perdeu o controlo sobre a situação e que quer recuperar a relação; muitas vezes, inicia um processo a que chamamos de “sedução” da vítima, ou com promessas de que vai mudar, com prendas, com justificações». «Isto gera na vítima um grande sentimento de ambivalência e muitas vezes é nesta fase da lua de mel que as vítimas deixam de vir aos serviços, porque acham que ele já deu sinais que vai mudar e, então, a esperança ressurge. Este é um ciclo que tende a repetir-se com o tempo e, por vezes, anos a fio», conclui Célia Barbosa.
“Adelaide”, no entanto, depressa percebeu que nada iria mudar. «A situação foi-se agravando sempre, até porque chegou um momento da minha vida em que até o próprio silêncio dele me magoava, ou então eram palavras que me magoavam muito. Ultimamente ele até já nem batia, sabia que me magoava mais assim e agia dessa forma», conta ao Obli. Foi então que procurou ajuda na APAV e foi encaminhada, em maio de 2011, para uma Casa de Abrigo, onde esteve quase um ano.
Célia Barbosa considera que o impacto da violência na vítima «pode ser a vários níveis»: «Muitas vezes, o impacto resulta em sintomatologia psiquiátrica, ou seja, falamos de mulheres que às vezes apresentam sintomatologia do foro depressivo ou do foro ansioso, portanto, muito descrentes de si próprias, do valor como pessoas, que foram perdendo o gosto por si e com a autoestima minada, muitas vezes muito ansiosas, porque vivem numa situação de medo frequente». Outras vezes, temos alterações que tocam na funcionalidade diária, por exemplo, maior absentismo profissional, vergonha, isolamento social ou a própria relação com os filhos está um pouco alterada. Célia Barbosa acrescenta, porém, que há vítimas que lidam melhor com as experiências, preservando as suas competências pessoais: «E vêm mais determinadas, sem sintomatologia psiquiátrica; vêm, sim, revoltadas, vêm com raiva. Raiva é um sentimento que é importante. É sinal que a pessoa ainda preservou dela qualquer coisa. Porque a raiva é energia, sempre; a questão é canalizarmos essa raiva para algo positivo».
Entretanto, “Adelaide” fez o 9.º ano e quer ainda completar o 12.º. Escreve, gosta muito de cantar, procurou retomar a sua vida: «A minha vida mudou, mas tudo pela positiva. Eu sinto-me bem cá, sinto-me feliz. Claro que gostava de ter os meus netos e os meus filhos perto de mim…». Na voz, nota-se-lhe uma certa tristeza e mágoa. Embora os filhos digam que está tudo bem, “Adelaide” sente que não está. «Eles dizem que eu que fiz bem, que já devia ter feito há mais tempo, mas eu sinto que não está nada bem… Eu sinto que eles têm aquela mágoa… Mas eu não os abandonei…». Certo é que não vê o filho do meio desde que saiu de casa e, o mais velho, só viu uma vez. Do ex-marido, nada sabe. «Ele às vezes pergunta às minhas netas se eu estou bem. Para mim, ele está arrependido…».
A violência doméstica é um crime público. Significa que o procedimento criminal pode não resultar de queixa apresentada pela vítima, mas por qualquer pessoa ou entidade. O crime de violência doméstica está previsto no artigo 152.º do Código Penal Português. Segundo dados divulgados, até junho deste ano, estavam nas cadeias portuguesas 479 pessoas a cumprir pena pelo crime de violência doméstica.
Os comportamentos violentos e abusivos, não são apenas físicos ou psicológicos (intimidação e ameaças). Além destes, o sofrimento infligido pode ainda ser sexual, económico ou social. O problema é transversal à sociedade – atinge as variadas classes sociais e faixas etárias; não é apenas entre o casal, mas também sobre idosos e crianças; existe tanto nos casais hetero como homossexuais.
No início deste mês, a secretária de Estado dos Assuntos Parlamentares e da Igualdade, Teresa Morais, divulgou que a violência doméstica vai passar a ser tema tratado nas escolas, no próximo ano letivo.
VIOLÊNCIA NO NAMORO: «ELA E ELE SÃO ORA VÍTIMAS, ORA AGRESSORES»
Nos casos de violência doméstica que acompanha, Susana Oliveira vai-se apercebendo que, de facto, já no namoro havia sinais que estas desvalorizaram, indícios a que não se dera atenção e que eram já indicadores de ciúme, controlo e chantagem por parte do agressor. «Quando chegam a esta fase, as vítimas fazem uma avaliação da vida delas, puxam um pouco as coisas atrás e veem que realmente já existiam indícios de violência. E um dos sinais era o controlar, o ameaçar, que depois, mais tarde, passaram para uma situação mais abusiva ainda e, por vezes, de violência física», explica a coordenadora do Projeto SOPRO Feminino.
Também a coordenadora do GASC, Célia Barbosa, confirma que, na exploração da história de vitimação, percebem, muitas vezes, «desde o início do namoro, dinâmicas relacionais que envolvem poder, controlo e alguns preconceitos, por exemplo, no casos dos homens, mais machistas do papel da mulher e que, ao longo dos anos, vão muitas vezes acentuando-se de uma forma mais visível».
Os jovens, em teoria e nos discursos, «tendem a não legitimar ou aceitar a violência no namoro», notam as investigadoras da Escola de Psicologia da Universidade do Minho (UM), Marlene Matos e Andreia Machado. Porém, «os estudos demonstram que, ao nível das práticas, os jovens perpetram e são vítimas de violência no namoro em números muito preocupantes». Ainda recentemente, a investigadora da Universidade Fernando Pessoa, Madalena Sofia Oliveira, reuniu o depoimento de 1500 jovens, entre os 15 e os 20 anos de idade, e observou que «25% dos jovens admitem ter agredido o/a seu/sua parceiro/a e 29% relatam ter sido vítimas de comportamentos violentos». Entre os mais frequentes, estão insultos e difamações, bem como bofetadas. De resto, é ainda de notar, de acordo com vários estudos, que a violência no namoro parece ser mais «bidirecional», atenta Susana Oliveira. «Ela e ele são ora vítimas, ora agressores».
As investigadoras da Escola de Psicologia da UM notam que no fenómeno da violência no namoro se assiste a «uma maior paridade de género no exercício dessa violência entre rapazes e raparigas». Talvez isso se explique pelo facto de, «comparativamente ao que se passa no contexto marital, a violência nas relações amorosas se diferenciar pelo facto de, frequentemente, compreender “atos menos severos”». Não impede, porém, que a violência no namoro seja um fenómeno «com um potencial de impacto deveras significativo», para as investigadoras da UM.
É para prevenir este tipo de experiências – que magoam, humilham e assustam a vítima –, que o Projeto SOPRO Feminino desenvolve ações nas escolas, no sentido de «criar dinâmicas para ensinar aos jovens a distinguir o que é e o que não é uma relação de namoro saudável». Isto porque, alertam Marlene Matos e Andreia Machado, «a violência no namoro é um forte preditor da violência marital, daí importância de uma prevenção precoce e na união de esforços na eliminação deste fenómeno».
Também a secretária de Estado dos Assuntos Parlamentares e da Igualdade, Teresa Morais, alertou para o risco de encarar a violência no namoro com normalidade: «Esta tendência para encarar a violência no namoro com normalidade é perigosa para as pessoas e para a comunidade. Ver com normalidade a violência no namoro significa admitir que estes ciclos de violência se repetirão ao longo das gerações, tornando inúteis os nossos esforços para estancar a violência doméstica no nosso país», considerou. «Não há nada de normal nas relações violentas. Não há amor que justifique a agressão. Não há ciúme que justifique o stalking [perseguição]», salientou Teresa Morais, numa sessão sobre Violência Doméstica e Violência Escolar, realizada no âmbito das III Jornadas Nacionais contra a Violência Doméstica e de Género.
O Obli procurou reunir testemunhos de quem já tenha passado pela experiência de violência no namoro, mas tal não foi possível.
| Reportagem publicada na edição 0.7 do Obli (dezembro de 2014) |