A história de vida de Carlos Basto começa a traçar-se faz amanhã 85 anos. O percurso nas artes começou cedo. Lembra-se justamente de uma professora primária ter dito à sua mãe para o deixar fazer desenhos, se era isso que ele queria. Depois fala numa “evolução”: fez caricatura, depois fotografia, a seguir cinema, foi Vereador, escreveu sobre a história da cidade e sobre a imprensa de Barcelos. Dedica-se agora à pintura a aguarela e a sketchbooks. Homem de vida preenchida, passa os dias a desenhar e a pintar e acorda com “pena de já não poder fazer outras coisas”.
Tratado por Mestre por alguns, em jeito de reconhecimento – “Querem chamar-me Mestre, chamem” –, nunca deu aulas. “Quando me vinham pedir, tomara eu que me ensinassem a mim!”, sublinha. Premiado nacional e internacionalmente, conhecido e reconhecido, é homenageado por estes dias, na sua cidade.
Começamos pelo mais recente. Amanhã completa 85 anos de idade e é inaugurada uma exposição para assinalar a data [ver caixa]. Que balanço faz destes 85 anos de uma vida com tantas actividades a que se dedicou?
Não tenho tempo para fazer essa avaliação. Foi uma vida cheia, muito preenchida? Sim. Preenchida foi e de que maneira. Fiz muitas amizades, muitas pessoas que realmente gostaram muito de mim e isto é engraçado: terra que me convide para fazer um livro, ao fim de pouco tempo, estamos amigos. E continuamos amigos.
Vamos então recuar até ao início desta sua paixão pelo mundo das artes. Como foi despertando para esta área?
Não sei… Só me lembro de uma coisa: a minha mãe tinha um estabelecimento comercial e, um dia, eu estava lá – era menino e moço, andava na primária – e entrou a minha professora, que era uma belíssima professora, mas conhecida por ser mazinha. Então a minha mãe fez-lhe queixa: “Ele não faz nada para a escola, só está a fazer desenhos. Só faz desenhos”. E diz ela assim: “Está a fazer desenhos? Deixe fazer, que é o que ele quer fazer. Pronto, deixe-o fazer”. Isto, na primária. Depois então do Liceu, fui estudar para o Porto. Na faculdade, fiz muita caricatura. Entrei até num concurso que houve a nível nacional e, na altura, ganhei o 3.º prémio nacional. Pelos vistos, de uma forma um bocado esquisita, porque não fui eu que quis expor, roubaram-me a caricatura. O indivíduo que estava à frente da Faculdade de Ciências nessa altura pediu-me determinada caricatura que eu tinha feito, que queria expor, e eu neguei-lhe, disse que não. Então ele encarregou um colega meu de ma roubar para lha entregar.
Estudou na Faculdade de Ciências, como referiu. A sua formação não é em Belas-Artes?
Não, nada disso. Não tinha nada a ver. Mas nessa altura fiz muitas caricaturas, sobretudo para colegas, para os livros de curso. Foi nessa altura que fiz a caricatura do Mestre [que foi depois premiada a nível nacional] e estava a ver que ia dar para muito torto. Ia dar para muito torto porque estávamos no anfiteatro, ele falava, falava, falava, não havia sebenta e nós tínhamos que escrever. Então, combinávamos dois ou três, um ia tirando notas e, quando perdesse o fio à meada, dava uma cotovelada no vizinho e ele continuava. E nós fazíamos isso! De maneira que eu tirei os meus apontamentos, às tantas, perdi o fio à meada, dei a cotovelada no vizinho e ele começou a escrever e eu vejo uma risota lá para baixo – porque eu estava no alto do anfiteatro – e vejo lá o Mestre a meter a mão pela cabeça – ele fazia muito isso –, era uma pessoa de bastante idade, mas tinha meia dúzia de cabelos e metia a mão no cabelo e ficava com ele todo no ar. E era uma risota e ele com a vara no quadro preto “Eu faço, eu aconteço, eu reprovo todos”. Fez-se silêncio e olho para baixo e era a caricatura que estava a correr, sem eu saber… Estava já naquela primeira fila, se ele olhasse para a frente dele, via e era um sarilho muito grande. Entretanto, por ali adiante, comecei-lhe a ganhar o gosto…
Mas, em termos académicos, é formado em quê?
Em nada. Frequentei apenas Ciências.
E quando é que a arte passou a tornar-se um caso sério na sua vida?
Comecei por me dedicar primeiro à fotografia. Tinha uns amigos aqui em Barcelos – eu era o mais novo, podia ser filho de qualquer um deles – e fizemos uma espécie de uma tertúlia que se dedicava à fotografia. Eu enveredei com eles. Era o engenheiro Lima Torres, o Miguel Matos-Graça, eu e um dos Sá-Carneiros. E andávamos sempre a tirar fotografias por todo o lado. Entretanto, aquilo já não me prendia assim muito – prendia-me a amizade, mas…. E entrei para uma coisa que, para mim, tinha mais movimento, que era o que queria na altura: cinema. Dediquei-me ao chamado cinema de amadores, que agora se chama o cinema não-comercial e foi nisso que eu ganhei prémios.
Como foi esse seu percurso na realização, no cinema?
Aquilo, pelos vistos, agradou a muita gente, porque ganhei os maiores prémios [mostra medalha de Prata do XVIII Festival de Cannes, em França, conquistada com o filme “Oleiros de Barcelos”, em 1965]. Em resultado, o Adriano Nazaré, um dos realizadores da RTP, que era a única estação de televisão que havia na altura, veio convidar-me para ser correspondente em toda a área aqui do Norte, praticamente do Douro para cima, Mas houve alturas em que tive até que ir para baixo do Douro, porque o indivíduo que estava a funcionar como operador aqui no Norte, o Artur Moura, acompanhou a selecção portuguesa que foi para Londres, naquele célebre campeonato em que quase que chegávamos a ser campeões [1966] e então fiquei eu com toda a área, todo o Norte, durante bastante tempo.
Foi fotógrafo, realizador quer de cinema não-comercial quer da RTP. É agora mais reconhecido pelas aguarelas. Fez referência aos livros, a maior parte deles sobre o concelho e também Caminhos de Santiago…
E não só. Este livro, por exemplo, não tem nada a ver com Barcelos [mostra “Pelo Alto Minho – Sketchbook”]. Tem a ver com dez câmaras municipais, que são as câmaras todas do distrito de Viana do Castelo. Mercê dos Caminhos de Santiagos, a Comunidade Intermunicipal (CIM) do Alto Minho veio pedir-me para fazer isto. Entretanto, também, e por causa dos Caminhos de Santiago, vieram a Barcelos determinados professores da Universidade de Santiago, para estar comigo por causa do livro [“Caminho Português de Santiago”]. Foi esse livro que fez com que houvesse aquela grande avalanche de 50 e tal camionetas que foram de Barcelos até Santiago de Compostela e o livro foi lá lançado. Depois um desses professores veio me pedir para eu fazer este [“Roteiro do padre Sarmiento a Santiago – rodeando o Salnés”].
“Não há dinheiro para comer, quanto mais para comprar quadros”
Apesar destes sketchbooks e outros – estou a lembrar-me, por exemplo, de “A Mareada em Apúlia” –, no essencial, os seus livros acabam por ser sobre o património local. Faz questão de valorizar o património local?
Sim, sim. Não se poderá chamar livros turísticos, mas têm uma finalidade turística, não há dúvida nenhuma, portanto, é o património que tem que vir ao de cima. E é nisso que eu me sinto bem: a desenhar.
É assim que passa os seus dias?
A desenhar. Não tenho tempo, às vezes, para comer, não tenho tempo para dormir nem para mais nada. Durante algum tempo, pintava, como os outros pintores, para vender quadros. Nestes últimos tempos, isto tem levado uma reviravolta e não há dinheiro para comer, quanto mais para comprar quadros. Compreendo isso perfeitamente. Entretanto como surgiu isto [os sketchbooks], eu não tenho tempo para mais nada, porque, apesar de tudo, continuo, e de que maneira, a desenhar e a pintar, porque pinto para os livros que faço [mostra um livro pronto para ir para a paginação]. Podemos saber sobre o que é? Viana do Castelo.
No essencial, quer os seus quadros, quer os livros, nada têm de abstracto. Portanto, retratam passagens, locais…
Nunca entrei no abstracto. Posso fazer – e cheguei a fazer em tempos, já – ‘abstralizar’ um pouco aquilo que faço, no sentido de deixar de definir muito o traço. Fazer o traço de tal forma que se veja e que se sonhe também.
Teve diversas actividades de que já aqui fomos falando. Foi também Vereador no município de Barcelos. Quando é que se direccionou para a pintura em concreto? Ou foi sempre pintando?
Não, antigamente não pintava. Quer dizer, cheguei a encontrar uns quadritos feitos por mim, tinha eu 15 anos, umas primeiras aguarelas. Depois é que, conforme a vida se ia tornando mais sedentária, chamemos-lhe assim… Eu não podia andar a correr de um lado para o outro com a câmara atrás de mim, não podia ser e, então, comecei a desenhar e a pintar.
“Tenho sido muito acarinhado”
Amanhã, no dia em que assinala os 85 anos, inaugura também uma exposição com 85 obras. Quem visitar a exposição o que vai encontrar?
Independentemente do tamanho dos quadros, tive a preocupação em diversificar o que levo, de acordo com aquilo que fiz. Se é para comemorar um aniversário, então há que mostrar realmente uma evolução e os assuntos que procurei. Dividi por épocas e por localidades, inclusivamente vão alguns quadros da Galiza, outros de uma exposição correspondente a um livro que fiz sobre o Alto Minho, portanto é o que eu fiz. Falou-me em dois 85s: o 85 de aniversário e o 85 dos quadros, mas eu acrescento outro. São três! Que é o do preço… O do preço. Tenho sido muito acarinhado pelo povo aqui desta terra. A forma que eu senti que realmente estava a agradecer aquilo que fizeram era diminuir o preço [85 euros]. Isto é um preço só durante o evento. Em jeito de agradecimento por esse reconhecimento… É uma forma de agradecer, porque eu entendo que é difícil, hoje em dia, encontrar pessoas que possam dispor de dinheiro para comprar um quadro. 85 euros já vejo com mais facilidade.
85 anos e, mesmo assim, não pára. Ainda há pouco disse que passa os seus dias a desenhar…
Como vê, aqui está outro desenho, que estou a preparar para o Alto Minho também. Para um outro livro, um scrapbook, mas também para o Alto Minho.
Faz questão de se manter activo na área que lhe dá grande gosto…
Sim, sim. Às vezes, quando digo que não tenho tempo para comer, não é propriamente tempo. Levo sempre trabalho para casa, vou sempre com a minha pasta para lá e para cá. Às tantas, olho para as horas, “meia-noite?, agora já não vale a pena [jantar]”. Acabo por me esquecer. Custa-me dizer que não a uma pessoa que me procura a pedir seja o que for, de maneira que depois aguento (sorri).
“A exposição dos 85”
Entre amanhã e terça-feira, Barcelos presta homenagem ao pintor e aguarelista Carlos Basto, com uma exposição. Na Galeria Municipal de Arte, vão estar patentes 85 obras, realizadas ao longo do percurso do artista barcelense. Carlos Basto chama-lhe “a exposição dos 85”: 85 anos de vida, 85 obras expostas, a 85 euros cada. “Uma forma que encontrei, talvez um pouco subtil, de agradecer à população de Barcelos que sempre me acarinhou, era pôr cada quadro a 85 euros. Seja ele qual for”, explicou ao JB.
Trata-se de uma exposição que representa “85 anos de trabalho”. “Mas só na última metade da minha vida é que me dediquei mais à arte, mas depois passa a ser uma coisa absorvente. Absorve as pessoas de uma forma extraordinária”, sublinha Carlos Basto.
Em comunicado, o autarca barcelense, Miguel Costa Gomes, considera que esta homenagem é “ uma forma que o Município de Barcelos encontrou para agradecer ao artista Carlos Basto o contributo que deu e que continua a dar para que Barcelos tenha mais visibilidade e projecção”. O edil sublinha que Carlos Basto é “um artista multifacetado que em todas as suas obras faz questão de reflectir o orgulho que sente em ser barcelense e a extraordinária história e cultura do nosso concelho”.
Amanhã, pelas 21h00, realiza-se também uma tertúlia sobre “A Cor e o Traço na pintura barcelense”, que vai contar com a participação de pintores, críticos de arte e o público em geral.
[in Jornal de Barcelos, edição de 19 de Abril de 2017]