Implica criar, treinar e cuidar de falcões e outras aves de presa. A finalidade é uma: caçar. A falcoaria ou cetraria existe há milhares de anos e até já foi entretenimento da realeza. Passaram-se os anos e a essência da actividade mantém-se. Os falcões e outras aves de rapina, esses, são utilizados ora no controlo da fauna, ora em educação ambiental, ora em recriações históricas.
António Peixoto tem 40 anos, 15 deles vividos em sintonia com aves de rapina. “A falcoaria para mim começou porque eu queria caçar com falcões”. O barcelense criou uma empresa, a Bosque Atlântico, para gerir caça. Entretanto, adquiriu um falcão para “começar a caçar com ele”. “Já era o gosto pela arte, pela essência da falcoaria, e, ao fim de dois ou três meses, fui convidado por uma empresa de Lisboa para efectuar controlo da fauna aqui no norte, mais precisamente num aterro sanitário”, explicou ao JB.
O que o fascina nesta actividade? “Não dá para explicar”, a resposta chega ao cabo de uns segundos. “Eu acho que isto ou se gosta ou não se gosta e, quando se gosta, a gente dedica-se de corpo e alma”. E observa: “Costumo dizer que, quando começo a fazer um falcão, ele só não dorme comigo, porque, de resto, desde andar comigo de carro para todo o lado, jantar, ver televisão, é assim que a coisa se processa, no início”, explica. E “fazer um falcão” é adestrá-lo, ensiná-lo e fazer com que ave e falcoeiro criem um laço, “que é muito volátil”. “Porque elas utilizam-nos a nós e permitem que a gente as utilize a elas”, explica.
Ao longo da conversa, António Peixoto deixa claro que a relação que cria com as aves é de mútuo respeito, pouco mais: “Os laços, principalmente nas aves criadas pelos pais – que são as mais próximas do selvagem possível –, são muito ténues. Nas aves impregnadas, ou seja, que são criadas à mão, desenvolve-se laços que são diferentes, porque elas passam a olhar para nós e a ver-nos como semelhantes. Nas aves criadas pelos pais, que são as minhas predilectas, a relação é de respeito mútuo”. Isto é: o falcoeiro respeita o lugar da ave, proporciona-lhe a presa e, por sua vez, a ave deixa também que o falcoeiro se aproxime e recolha a sua porção.
Do controlo da fauna às recriações históricas
Actualmente, António Peixoto trabalha com 22 aves de rapina, entre falcões, águias, mochos, corujas, entre outras. Na Bosque Atlântico, trabalha-se sobretudo no controlo da fauna: “Neste momento, estamos a trabalhar em três empresas cá no norte, ao nível do controlo de gaivotas”. “A gaivota é um animal que cria alguns problemas, graves e grandes”, conta, pelo que é contratado para “espantar” as gaivotas: “Nós vamos para lá com as aves de rapina e com outros meios – mas a essência e os meios que fazem com se atinja resultados favoráveis são aves de rapina. A gente solta as aves, treina-as para voar naquele sentido, elas espantam as gaivotas e assim atingimos o objectivo que é não ter gaivotas num determinado local”. Além disso, António desenvolve há já algum tempo um projecto de educação ambiental, que tem que ver com aproximar e dar a conhecer as aves de rapina à população. “Temos um biólogo que trabalha connosco e então levamos as aves para perto das pessoas, para lhes tentar explicar o que são as aves de rapina. É a forma mais fácil de tomarem conhecimento e verem tão próximo um animal fantástico como este”, explica ao JB.
Estas são as actividades que António Peixoto desenvolve durante todo o ano. A par disso, vai também participando em feiras medievais e recriações históricas. E vai sempre percebendo como aves despertam a curiosidade das pessoas, “principalmente, as nocturnas”. “As nocturnas têm sempre aquele fascínio do oculto e de bicho da noite, então, as pessoas quando vêem uma nocturna, tão de perto e tranquila, ficam completamente estupefactas”, avalia.
Cada ave tem as suas capacidades e também o falcoeiro tem de ter sensibilidade para gerir essas características de acordo com o objectivo pretendido. “Não podemos ou não devemos com um falcão-peregrino tentar caçar coelhos, por exemplo, porque o peregrino é uma ave do ar, sendo inclusivamente a mais rápida que existe à face da Terra, e a sua característica principal é voar e picar sobre a presa, como tal, a caça com falcão-peregrino incide sobre pombas, perdizes e aves também. As águias, em contrapartida, utilizam-se essencialmente para caçar coelhos”, exemplifica António Peixoto. E há cuidados e rotinas que importa não esquecer: “As aves têm de voar, todos os dias ou quase todos; mediante o objectivo que temos, temos que lhe proporcionar a presa ou não; tem que ter água, alimento de qualidade – só carne (rato, pombo, codorniz, coelho, frango) – e tem que ser pelo menos pegada todos os dias na luva, para percebermos se está tudo bem, se tem as penas em conformidade, se não tem cravos, se não tem feridas, é todos os dias”. Fica evidente que se assume aqui “um compromisso diário”, “de segunda a domingo”, atenta António.
A falcoaria em termos de ‘como fazer’ “evoluiu pouco”, observa António Peixoto. Evoluiu, sim, em termos de materiais “que ajudam a preparar melhor ou pior, se mal utilizados, as aves”. “Agora, também já se utilizam drones para treinar falcões, mas, antigamente, esses drones não existiam”, exemplifica. Mas há, claro está, materiais básicos: desde logo a luva, o rol (um simulacro em couro, que é utilizado para chamar as aves; elas passam a compreender aquilo como uma presa), o piós (tiras, tradicionalmente em couro, para segurar o falcão), o caparão (uma espécie de capacete, que se utiliza essencialmente nos falcões para que eles mantenham a calma; é um dos símbolos icónicos da falcoaria), entre outros.
Enquadramento legal
A falcoaria ou cetraria conta com um enquadramento legal próprio. “Só podemos ter aves nascidas e criadas em cativeiro. Essa criação e a comercialização ou a troca são tuteladas pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF). As aves têm de ter um certificado, uma espécie de um bilhete de identidade, que a acompanha para todo o lado”. Isto, além de outras especificidades que têm que ver com o falcoeiro, a próprio ave de presa e a caça. A aquisição de aves de presa para outros fins é ilegal em Portugal. Por isso, não é um animal que qualquer pessoa possa ter em casa. Até porque, nota António Peixoto, “um falcoeiro ou um cetreiro têm a obrigação de não fazer de uma rapina um pet [animal de estimação]. Nós temos que ter um respeito muito grande por estes animais e a nossa função é mesmo a de tentar mostrar às pessoas que eles não gostam de nós. Eles sim criam uma relação connosco, trabalham connosco, mas não gostam de nós, nem tão-pouco têm um tipo de comportamento que tem um mamífero como o cão e como o gato”. “Nós criamos é uma relação de trabalho”, sublinha António Peixoto, um falcoeiro barcelense.
A Falcoaria em Portugal é, desde 1 de Dezembro de 2016, Património Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO.
[in Jornal de Barcelos, edição de 28 de Junho de 2017]