Um(a) Kaos pelo mundo há 20 anos

Vivem apaixonadamente o hóquei em patins, mas, sobretudo, o Óquei de Barcelos. Entoam cânticos de apoio, incentivam a equipa e tolhem o adversário, vibram com o golo. São Kaos na catedral do hóquei, em Barcelos, mas também em qualquer outro pavilhão por onde passem. 

24 de Novembro de 1997. É a data que consta como a da fundação da Kaos Barcelense, mas em resultado de um caminho que se trilhava desde 1992, quando, na altura, invadiram Oeiras no apoio ao Óquei Clube de Barcelos, naquele que haveria de ser o primeiro título nacional. “Eu já ia sempre ao Óquei e comecei a pertencer à claque, quando começou, em 1992. Para a época, era muito bem organizada, com cartões de sócio, havia chamada antes dos jogos”, começa por recordar ao JB, António Pedro (Tonny). Tonny e Filipe Lima (Kid) tinham 12 anos, em 1992, e, após algum esmorecimento, dali a cinco pertenceram ao grupo fundador da Kaos Barcelense 97. “Fazíamos parte da associação de estudantes da Escola Secundária Alcaides de Faria e reunimos ali o chamado núcleo duro e, a partir daí, foi juntar o pessoal”, explica Kid, que sempre teve o ‘bichinho’ das claques. E não vieram só mais cinco, como na canção de Zeca Afonso. De início, seriam “uns 50 e, de dia para dia, de jogo para jogo, a coisa ia aumentando. Chegamos a ter eventualmente, ali na nossa curva, cerca de 500 pessoas, à vontade”, observa Kid.

De ano após ano, geração em geração, foram muitos os barcelenses a passar pela Kaos Barcelense. “Quando estávamos na claque, havia o pessoal mais velho, na claque de 92. Nós eramos putos de 12 anos, ali a curtir a cena do Óquei. Depois, quando fizemos a claque, também havia lá os putos mais novos. Há pouco, fui ao Óquei e continua a haver a malta mais velha, que eram esses putos que tinham dez anos e que agora têm 20 e tal, mas continuam a ir para lá os putos de dez anos, que deixam antever que daqui a dez anos vai haver claque”, explica Tonny. É Kid quem completa, logo de seguida: “As pessoas passam e o clube fica. Na Kaos, é um bocado a mesma coisa: as pessoas passam e é de louvar ir passando de geração em geração e nós vermos que hoje ainda continua e que vai continuar”.

É o hábito, o vício e, sobretudo, a paixão que passa de geração em geração que motivava adeptos a assistir aos jogos de hóquei em patins, ao sábado à noite, e a encher o topo sul do pavilhão. Mas não só o Pavilhão Municipal de Barcelos. Ou o de Valongo, ou de Viana do Castelo. Invadem, Sevilha, Corunha, Barcelona. Vão, nem que sejam dois ou três – como Kid e dois colegas, até Itália, para uma final-four da Liga dos Campeões –.

Percorrem quilómetros e quilómetros, por vezes muitos, para apoiar o OCB, “o maior de Portugal”, e fazer com que os cinco, no rinque, sintam que está ali o sexto jogador, na bancada de qualquer pavilhão. Ou não fosse esta a melhor claque de pavilhão. Escreveu-o, na década de 2000, um português radicado em Itália, numa revista de claques. E o título por cá ficou e mantém-se bem actual. E, enquanto claque, houve quem lhes reconhecesse a importância, mas também, até nas próprias direcções do clube, quem apontasse que eram uns “desordeiros”.

Hóquei em patins. “A” modalidade

A ligação de Kid e Tonny ao Óquei de Barcelos começou cedo. A explicação, aponta Tonny, é simples: “O hóquei sempre foi a modalidade em Barcelos. Lembro-me de ter seis anos e de ir ao Pavilhão e aquilo estava cheio, completamente a ‘abarrotar’ por todo o lado. Ouvia-se também aquela história do campeonato do mundo que foi em Barcelos, e em que o Pavilhão ficou interdito por 25 anos, porque, na final Portugal-Espanha andou tudo à chapada. Ouvia essa história e motivou um bocadinho, não pela porrada e violência, mas por saber que o Pavilhão era sempre uma cena de juntar muita gente e, sempre que há multidões, há uma adrenalina diferente”. A juntar a isso, “o Óquei lutava sempre por títulos e ajudava muito”. “Vimos o Óquei a ser campeão europeu, a ser campeão do mundo, a ganhar tudo”, enumerou Tonny. E, com tudo isso, o poder encher o peito para dizer de onde se é. “Era e é um orgulho muito grande, quando se fala no Óquei de Barcelos, porque a gente vai além-fronteiras e, na modalidade, toda a gente conhece o OCB”, atenta Kid.

Tonny esteve na claque durante pouco tempo, cerca de dois anos. Tempo mais do que suficiente para, nas aulas de matemática, entre equações, escrever as letras para as melodias que Kid descobria. Tonny diz que foi a “ajuda inicial”. Depois, o facto de ter começado a trabalhar numa rádio e a fazer reportagem de pista foi ponto de partida para momentos caricatos. “O Cristiano, do Porto… Numa altura, meti o microfone no time out e ele “Não costumas estar na bancada? Estás aqui?”. Já Kid fez parte da Kaos até 2004, altura em que abandonou por compromissos profissionais. Tempo mais do que suficiente para “fazer muitas amizades” e para jogos e momentos inesquecíveis, por diversas razões.

“Toquei com a cabeça na baliza”

Recuemos até à final-four da Liga dos Campeões, em Guimarães [2002]. O Barcelos ganhou a meia-final ao Benfica, que “ninguém esperava”, e foi à final com o Barcelona. “O jogo estava empatado. Faltava um minuto e pico, dois minutos para terminar o jogo e, ao festejar o golo, o Alex Bertolucci pendurou-se na rede, penduramo-nos todos na rede, a rede caiu, caímos todos uns por cima dos outros”, recorda Kid. “Eu toquei com a cabeça na baliza”, exclama Tonny. O jogo esteve interrompido e depois, em dois minutos, o Barcelona deu a volta. Este é um dos jogos em que, “se não houvesse a queda da rede, o Óquei ia ganhar aquela final”. Mas há registo de outros jogos em que a claque foi determinante: “uma meia-final com o Liceo da Corunha, aqui em Barcelos, em que a claque, com algumas peripécias, conseguiu que o Óquei ganhasse”. Mas houve mais: “Mandámos um treinador embora, o Jorge Vicente. A claque ia até aos treinos, íamos assobiar o treinador”.

OCB triunfal

Para quem viu o Óquei de Barcelos ganhar tudo o que havia para ganhar, não é fácil enumerar os melhores momentos, mas como esquecer a conquista do título, em casa, ao Benfica? “O Pavilhão completamente cheio, acho que não cabia mais ninguém, um calor infernal. Para mim foi dos dias mais bonitos que vivi na claque e com o Óquei”, recorda Kid. E, entre os menos bons, está a segunda mão de uma final, diante da equipa da Corunha: “[Lá] Um pavilhão mesmo enorme, nós chegamos lá de tarde, tudo calminho, entramos no pavilhão, só nós. De repente, começa a entrar gente no Pavilhão, tudo a olhar para nós e começam a cantar “portugueses, los vamos a matar”. 12 mil sempre a cantar virados para nós, todo o jogo. Pensámos que não íamos sair de lá vivos. Os jogadores do Óquei passavam junto às tabelas e levavam de toda a gente, os árbitros não faziam nada. Obrigatoriamente, o Óquei tinha de perder. E perdeu. Foi uma confusão”, recorda Tonny.

E se havia pavilhões que já se preparavam – “Vem aí a claque do Barcelos” –, em jeito de provocação, noutros, era notório também o respeito. “Para nos fazer frente, só havia quase os Super Dragões e pouco mais. Depois, há coisas que uma pessoa não sabe, mas, por exemplo, roubar uma faixa de uma claque é um insulto. Era o pior que nos podiam fazer, era roubar o que tivéssemos”, nota Kid. Ainda para mais, se fosse como aquela faixa, nos inícios da claque, que esteve em risco de não secar a tempo do jogo: “Foi o primeiro jogo fora. Da parte da tarde, estivemos a pintar a nossa primeira faixa, que durou uns anos, a dizer ‘Kaos Barcelense’. E chegamos à altura do jogo – foi à noite – e a faixa ainda estava fresquinha, passava ali um bocado de tinta por todos os lados, mas foi assim”. E com isto se percebe que “a claque não é [só] aquilo que se vê no dia do jogo”. “Há um trabalho de casa que é sempre feito e, naquela altura, então, nós gostávamos de primar por isso: de pintar faixas, ver os cânticos. O jogo era à noite, mas nós íamos para lá à tarde pendurar tudo, pôr tudo direitinho, pensando em que é que o público podia ajudar, em cartolinas nas bancadas, etc. toda uma coreografia que era pensada”.

20 anos depois

Dependendo dos jogos, a Kaos reúne hoje entre 50 a 100 elementos nos jogos em casa. Nos jogos fora de casa, há sempre 30 ou 40 elementos que tentam estar sempre presentes. O que os move é indiscutivelmente “paixão pelo clube”.

Vítor Cardoso faz parte do actual núcleo duro da Kaos. A relação com o clube, conta ao JB, é “quase umbilical”. E porque, “desde muito cedo”, foi habituado pelos pais a ir ao Pavilhão e a ver o Óquei, a ligação à claque surgiu quase naturalmente. “Quando era mais novo, olhava para aquela bancada e imaginava-me lá, mas havia sempre o receio de que os “grandes” me mandassem embora. “Em 2009/2010, o líder da Kaos, na altura, lembrou-se de eu ter ido uns anos antes a um jogo ao Pavilhão da Luz e convidou-me para começar a andar com ele. A partir daí, comecei a acompanhar o Óquei mais a sério, no meio daqueles que eu idolatrava em miúdo”, recorda Vítor Cardoso, que, de norte a sul do país, já percorreu quase todos os pavilhões. No estrangeiro, já acompanhou a equipa à Catalunha, a França, Itália e Alemanha. E, além do amor ao Óquei, todos se vêem como uma família. E também como família procuram ultrapassar as “muitas” dificuldades com que se deparam. “A maior delas todas é o facto de não sermos legalizados, o que nos impede de usufruir de bombo, faixas, bandeiras ou megafones, que contribui para que o apoio não seja tão forte como gostaríamos, apesar de, em muitos pavilhões, não haver policiamento e os stewards não proibirem a entrada desses adereços”. “Como não somos legalizados, o clube não nos pode ajudar tanto como gostaria, mas fazem sempre os possíveis para nos ajudar até onde a lei permite”, sublinha Vítor Cardoso, que não esquece a “conquista da Taça CERS, em 2016, em pleno Pavilhão Municipal de Barcelos”. Mas também não esquece a superação do OCB depois de ter andado “muito em baixo, sem estabilidade a nível directivo, com resultados muito aquém dos pergaminhos do clube”. “Ia ao pavilhão ver o Óquei e estavam 200 ou 300 pessoas na bancada. Foram anos que quase levaram ao encerramento do clube, mas, felizmente, não deixaram que isso acontecesse”, remata Cardoso.

[in Jornal de Barcelos, edição de 29 de Novembro de 2017]

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