Depois de uma estreia, na edição passada, que mereceu os melhores elogios, Joaquim Rodrigues partiu para o Peru, para a 40.ª edição do Rally Dakar, com “boas expectativas”. Mas ainda não estavam percorridos meia dúzia de quilómetros e já tudo se desmoronava, qual castelo de areia. Uma “aparatosa queda”, logo na 1.ª etapa, obrigou ao abandono da prova, depois, já em Portugal, a duas cirurgias e a uma recuperação gradual, ao longo de, pelo menos, cinco meses.
Em entrevista ao JB, o piloto de 36 anos – e já 27 de carreira – recorda o acidente, aborda a longa recuperação e, com a promessa de “voltar mais forte”, pensa já na próxima edição do Rally Dakar.
Este ano, voltou a participar no Rally Dakar. Foi a sua segunda participação, depois de uma estreia que mereceu muitos elogios. De que forma se preparou para a prova, este ano?
A preparação para este ano foi bastante intensa, devido à equipa [Hero MotoSports] ter uma moto nova. Estivemos o ano todo a tentar desenvolvê-la e a prepará-la para o Dakar. Penso que conseguimos fazer uma excelente mota. Basicamente é quase um ano em preparação para o Dakar seguinte. A minha preparação foi excelente, os resultados que fizemos nas corridas do campeonato do mundo e mesmo aquelas corridas internacionais que fizemos foram bastante positivas, por isso, as coisas estavam bastante bem encaminhadas, tudo bem alinhado e fomos para o Dakar com boas expectativas. Da minha parte, estava com boas expectativas, porque, no ano passado, na estreia, as coisas correram muito acima do esperado. Para mim, e é o que toda a gente diz, foi um brilharete, fui o piloto revelação do Dakar no ano passado e isso motiva um piloto a continuar.
O Joaquim já fez referência a isso. Depois de uma boa estreia, tão positiva, as expectativas só poderiam ser as melhores para esta edição…
Sim, as expectativas eram boas, mas a minha ideia de encarar a corrida este ano não era por causa do resultado que fiz no ano passado. Já tenho 27 anos de carreira, de corridas, e sei que às vezes um piloto entusiasma-se demais e depois pode cometer erros que não são lá muito bons. Então, fui para o Dakar 2018 com a intenção de acabar todos os dias, evitar as quedas e basicamente os erros de navegação, como no ano passado, em que fiz um erro que me custou muito caro, com mais de uma hora perdido. A experiência do ano passado levou-me a estudar melhor a corrida e a ver quais eram os meus objectivos e não ia com a ideia do top10 ou do top5 ou do pódio, não ia com ideia do resultado. Ia com a ideia de controlar aquilo que eu consigo controlar, que é andar na mota, evitar as quedas, as avarias, os erros de navegação. É uma corrida muito longa, são 15 dias em cima de uma mota, durante 15h/16h por dia. É uma corrida muito longa, por isso, muita coisa acontece e a única coisa que a gente consegue controlar é mesmo em cima da mota.
Certamente não contava com um percalço logo na primeira etapa. Este acidente, ao saltar uma duna, como é que se explica?
Obviamente que não esperava ter este acidente logo aos primeiros quilómetros de corrida. Infelizmente, fala-se muita coisa: da minha inexperiência e que eu fiz um erro, enfim, custa ouvir algumas coisas que as pessoas falam. Sei que não tenho ainda a experiência de um piloto dos da frente, também era minha segunda participação. Há pilotos que andam lá há quase 15 anos e têm obviamente muito mais experiência que eu. Se o perigo estivesse assinalado no roadbook. Eu já tinha experiência suficiente para saber o que é um perigo no roadbook, não é? Se estivesse lá marcado, tinha mais precaução, mas infelizmente, no desenho, aquilo não estava marcado e um buraco com 15 metros é um “perigo 3”, que é o perigo máximo. Não estava assinalado, infelizmente caí. Muita gente não sabe, mas quando se vai no deserto, com o sol alto, na areia parece tudo recto, a gente não vê buracos, claro que sabemos que aquilo é ondulado, mas normalmente a organização, quando é uma duna cortada ou um perigo destes, costuma fazer uma nota a dizer que, ao km x, está lá aquele perigo e infelizmente não estava marcado. Muitos pilotos queixaram-se dos roadbooks, este ano, inclusivamente cerca de 70 que se magoaram no Peru, isso dita alguma coisa. É impossível as coisas estarem correctas no roadbook e magoarem-se 70 pessoas. É impossível, porque ninguém é maluco de ter um perigo 3 e ir a fundo, ninguém quer morrer, ninguém se quer matar, ninguém se quer aleijar.
Houve alguma palavra por parte da organização a respeito desta falha, da ausência de indicação de um perigo?
Não sei. Fui logo para o hospital, para mim acabou a corrida, acabou o contacto com a organização. Obviamente sei, porque a minha equipa me informa, que houve muitas queixas e muitos pilotos a queixarem-se da corrida e dos perigos, por isso, alguma coisa tinha de estar mal.
Há pouco falou da areia e da ilusão que acaba por criar-se com o sol alto. Acabou por não ter percepção de que ia cair.
Quando estamos no deserto, em areia, nas dunas, sabemos que aquilo é ondulado, não é recto, não é direito. A percepção, a ilusão óptica que aquilo cria é a de que é uma auto-estrada. Quando o sol está alto, na areia não há sombras, a gente não tem a percepção. A gente vai com cuidado, mas depressa, que aquilo está ao cronómetro, é uma corrida, não é um passeio turístico. É aí que todos os pilotos têm de confiar no roadbook. Eu sabia praticamente o roadbook de cor da primeira etapa – porque era uma etapa curta, para a gente ter aquele primeiro feeling – e o único perigo que estava marcado era ao quilómetro 16, um perigo de nível 3, que eles falaram no dia anterior, no briefing, que era uma duna gigante, que íamos ter de subir e do outro lado era cortado 200 metros a descer. Era o único perigo, que era de nível 3, que eles marcaram e estava no roadbook. Em 31 quilómetros, só tinha um perigo. Eu caí logo nos quilómetros iniciais, no primeiro perigo que apareceu. Comecei a fazer a minha estratégia de corrida e queria andar bem, obviamente. Tinha todas as condições, estava preparado, fizemos boas corridas de preparação no campeonato do mundo, sou um piloto profissional e estava lá para fazer um bom resultado.
Entretanto o seu regresso a Portugal foi também bastante demorado. Entre ter sido levado para o hospital até conseguir vir para Portugal, passaram-se vários dias…
Sim… Felizmente, não me lembro da queda. O impacto foi tão violento que perdi os sentidos. A primeira coisa que me lembro é de estar já no helicóptero a ser evacuado. Tenho de agradecer à equipa médica do hospital onde estive, no Peru. Primeiro, fui para o Hospital de Ica, que era mais perto de onde foi o acidente, que era a cerca de 300 km de Lima, da capital. Aí fizeram uns exames, viram que tinha um problema na coluna e fui imediatamente evacuado para o Hospital de Lima, para uma das melhores clínicas da capital. Não tenho queixas nenhumas de como fui tratado em Lima. O próprio responsável máximo do Hospital não percebia como era possível eu estar lá seis dias deitado a olhar para o tecto, à espera que me mandassem para Portugal, para ser tratado. Penso que foi um exagero o tempo que estive à espera para vir embora. Entretanto, as coisas resolveram-se. Fui evacuado para Paris, de Paris para Lisboa, de Lisboa tive de vir de ambulância para o Porto, foi assim uma viagem de muitas fases. Mas foi a maneira mais rápida que eu aceitei para vir para Portugal, senão tinha de esperar mais lá e eu já não podia esperar mais. O meu médico, o Dr. Fernando Rodrigues, que é o médico que sempre seguiu a minha carreira e me tratou, estava à minha espera e, mal cheguei, começou a “trabalhar em mim”. As coisas correram bem.
Pelo meio, foi submetido a duas cirurgias…
Sim, tive que fazer duas cirurgias na reconstrução da vértebra L5. Felizmente, a parte da medula não está danificada nem afectada e tudo indica que vou recuperar a 100%. Agora, são uns mesinhos a recuperar, com muita calma, e começar a pensar na próxima.
Para já, como está a correr a recuperação? Como é que se sente?
Em termos de dores, nunca tive muitas dores, é mais aquela coisa que está ali a moer e eu não gosto de estar limitado, sou uma pessoa independente, gosto de fazer as minhas coisinhas, não gosto de depender de ninguém e aquela semana custou-me um pouco, estar aqui fechado em casa e toda a gente a ter de me fazer tudo. Mas, felizmente, ao fim de uma semana, fui fazer a minha primeira consulta pós-operação para fazer o controlo. O médico disse que estava tudo em ordem, que podia começar a caminhar. Mal ele disse que podia começar a caminhar, eu saí logo de casa, fui logo passear um bocadito.
Vai caminhando gradualmente, mas, naturalmente, com limitações. A recuperação vai durar alguns meses?
Isto que vocês estão a ver já é muito melhor do que o que eu andava. Se vêem o meu primeiro vídeo no hospital, até um caracol passava por mim. O que o médico está a prever, depende da minha recuperação até lá, mas é que, às seis semanas, possa começar a fazer um bocado de bicicleta estática, a mexer as pernas devagar e depois começar com natação. Aos três meses, vamos fazer novos exames, para ver como está a solidificar o enxerto que tive de levar na reconstrução da coluna e depois, aos cinco meses, esperamos que as coisas estejam bem e o médico, em princípio, volta a operar-me para tirar os parafusos.
Na sua página de Facebook, o Joaquim escreve, a determinada altura, que não são esses três parafusos que o vão parar, que vai voltar e mais forte. Já está a pensar no próximo Dakar?
Já estou a pensar no próximo Dakar. Isto é o meu trabalho, sou um piloto profissional. Acho que, psicologicamente, até estou a levar isso muito bem. Normalmente, quando acontece estas coisas, há aquelas recaídas psicológicas, mas acho que me estou a aguentar e reagir bem. Por isso, estou forte mentalmente para continuar e não são mais três parafusos ou menos três parafusos que tenho no corpo que me vão fazer parar ou desistir dos meus sonhos, de fazer aquilo que gosto de fazer. Acho que toda a gente no mundo deveria ter a oportunidade de fazer aquilo de que gosta. Eu tenho essa oportunidade. Faço o que gosto, aquilo que sempre amei e, por isso, não vão ser parafusos que me vão parar.
Ainda assim, a preparação vai ser mais limitada.
Obviamente. A preparação agora vai ser mais complicada. Uma coisa é ter um ano completo de treinos, de corridas, de evolução da mota e outra coisa é ter – se tiver – três meses, talvez, para me preparar. É muito pouco, mas é o que tiver de ser. O que interessa é recuperar a 100% e, recuperando, começar o trabalho outra vez.
[in Jornal de Barcelos, edição de 31 de Janeiro de 2018]