“Que volumes são aqueles? O que contêm? Do que é que tratam?” Os livros da biblioteca do antigo convento de Vilar de Frades estão a ser alvo de tratamento técnico e estas são algumas das perguntas a que pretende dar-se resposta.
O tratamento dos cerca de mil volumes – pertença do espólio biográfico da Biblioteca Municipal de Barcelos – está a ser realizado no âmbito de um projecto mais abrangente, do Instituto de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, com vista a compreender “o papel [das bibliotecas monásticas] na difusão e circulação do saber, na constituição de espólios em áreas específicas do saber e na formação de leitores e de escolas”.
Ora, o convento de Vilar de Frades, em Areias de Vilar, tinha uma livraria monástica. “Quando, no final do século XIX, na sequência das leis de separação do Estado e da Igreja e da extinção dos conventos, mosteiros e das ordens religiosas em Portugal, o património foi passado para o Estado, o conteúdo das livrarias monásticas foi recolhido, um pouco por todo o país, para um depósito gigantesco, que se chamava o armazém dos livros desamortizados”, explica ao JB Raquel Patriarca, especialista em Catalogação, que – a par de dois especialistas em conservação preventiva – tem feito da Biblioteca Municipal de Barcelos o seu posto de trabalho.
A maioria dos volumes seguiu para Lisboa. Assim aconteceu com os da livraria monástica do convento de Vilar de Frades. Mais tarde, quando se criaram as bibliotecas públicas, em várias sedes de distrito e de concelho, até havia as estruturas propriamente ditas, mas “sem ter livros e sem condições para os adquirir”. “O que o Estado fez, na altura, foi ir ao depósito dos livros desamortizados e começar a redistribuir. Para a Biblioteca Municipal de Barcelos, veio aquilo que eles achavam que era ou que intencionavam que fosse o conteúdo da livraria monástica de Vilar de Frades”, continuou a especialista. Estamos a falar de cerca de um milhar de volumes – embora haja um “desfasamento entre o número de volumes e o número de registos” –, livros muito antigos, todos eles “entre os séculos XVI e XVIII e dois do início do século XIX”. “Os do século XVI são os mais raros, alguns com encadernações em madeira e ainda têm decorações nas caneladuras. Serão sempre livros religiosos, sermões, interpretações da Bíblia, direito canónico, história eclesiástica, filosofia, gramáticas”, enumera ao JB Raquel Patriarca.
As estórias além do que está escrito
A incorporar o património da Biblioteca Municipal de Barcelos estão livros que se julgava serem da livraria monástica de Vilar de Frades, contudo, o trabalho desenvolvido nos últimos meses pela equipa da Faculdade de Letras da Universidade do Porto tem revelado que “os livros trazem carimbos de posse, sinais ex-libris manuscritos, etc.”. “Estamos a descobrir, todos os dias, que não pertenciam todos à biblioteca de Vilar de Frades. Há livros de Alcobaça, Évora, Óbidos, Setúbal… Há muitos mosteiros de outras partes do país de onde os livros vieram”, conta ao JB Raquel Patriarca, especialista em Catalogação.
Mais há mais! “Há coisas engraçadas. Às vezes, encontramos, dentro dos livros, postais pessoais de pessoas que os estiveram a ler e nós estamos a guardar essas coisas todas. Tudo isso encaixará neste projecto global da divulgação e valorização da biblioteca monástica de Vilar de Frades”, isto porque está em cima da mesa a possibilidade de se fazer uma exposição “para contar a história destes livros e a história do projecto e da forma como ele tem estado a desenvolver-se”. E não ficamos por aqui: “Os livros estão realmente muito degradados, não temos necessidade nenhuma de estar a esconder e de fazer de conta que não, mas assumir o trabalho que estamos a fazer e assumir, até pedagogicamente, aquilo que aconteceu”. Por isso, a equipa de trabalho tem recolhido tudo aquilo que, a título de exemplo, ajuda a mostrar como é que se fazia a encadernação ou quais são os agentes que deterioram os materiais: desde cadáveres de bichos-de-conta e centopeias, também casulos do caruncho, o papel degradado pela humidade, as capas que estão degradadas, bocadinhos de papel que se soltam ou pedaços das encadernações. “Os livros têm histórias muito grandes e muito ricas, fora as histórias que lá estão escritas. E temos coisas engraçadíssimas. Catalogamos há um mês – para mim foi a primeira vez e já cataloguei muitos milhares de livros – um manual de exorcismos, do século XVII, penso eu. E tenho em cima da secretária – que ainda não está tratado – um livro de magia, que não veio de Hogwarts, é mesmo de cá e tem capítulos de necromancia e coisas assim”, partilha Raquel Patriarca.
Três fases do projecto
O objectivo último do projecto implica um estudo aprofundado da constituição das bibliotecas monásticas “e eventualmente da reconstituição daquilo que os monges teriam como literatura de interesse e obras úteis”. Para essa fase do projecto avançar, é preciso que toda a biblioteca esteja inventariada, catalogada, que é isso que está a ser feito. “Para isso, estamos a fazer todo o tratamento catalográfico e biblioteconómico, a higienização da colecção e vamos acondicioná-la melhor, porque os livros estão bastante degradados e são muito antigos”, elucida Raquel Patriarca. Entretanto, a parte que já está catalogada já está disponível no catálogo da biblioteca, no catálogo online, com linkagens, caso os livros já estejam digitalizados noutras bibliotecas. “O encontro e o achamento de um lugar digno para esta colecção é um processo que está em curso. Há a hipótese de eles voltaram ao mosteiro, sim, ainda não está nada definitivamente decidido”, conta a especialista.
O bibliotecário Municipal, Victor Pinho, sublinhou ao JB a importância deste estudo, como forma de “permitir saber, fundamentalmente, que livros são aqueles e qual o seu valor bibliográfico” e, depois disso, “mostrá-los, para que as pessoas também conheçam que livros são aqueles que fazem parte do nosso património”. Por agora, fica de fora a hipótese de restauro, dado os elevados custos. “A questão do restauro é uma questão que, se houver hipótese de nos candidatarmos a fundos, naturalmente que o iremos fazer, porque ficará caro. A maior parte dos livros está em mau estado”, explicou o bibliotecário municipal.
Esta primeira fase de consolidação e catalogação deve estar concluída dentro de dois meses. Na fase seguinte, entram em cena as investigadoras Maria de Lurdes Fernandes e Fátima Vieira, para o estudo e análise das várias dimensões que se podem aferir, quer sobre o conteúdo quer até sobre a própria “viagem” que esses livros fizeram. A fase de investigação é “a que demorará mais tempo e terá continuação por 2019”.
Uma última etapa é a da difusão e publicações, sendo que a consulta física terá de ser “mais ou menos restrita” e Raquel Patriarca explica porquê: “Não só porque os livros estão frágeis, como o material que foi utilizado nos anos sessenta para desinfestar é um material que, hoje em dia, está proibido, portanto, nós trabalhamos, parece um bloco operatório, porque temos de trabalhar de luvas, óculos de protecção, máscaras. Esse material é nocivo para a saúde dos leitores, por isso, estamos aqui a proteger o lado dos livros, mas também o lado das pessoas”.
O projecto do Instituto de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto é coordenado por José Meirinhos e financiado pela Direcção Regional da Cultura do Norte, no âmbito da candidatura Mosteiros a Norte do Portugal 2020.
[in Jornal de Barcelos, edição de 6 de Junho de 2018]