Tratar a dor “é um dos maiores desafios terapêuticos”

A dor é entendida como um dos principais desafios da medicina. Desde que é médico, já lá vão 13 anos, que Raul Marques Pereira constata que, em grande parte das consultas, “as pessoas vêm ao médico porque têm algum tipo de dor”. Porque o tempo era pouco e os recursos à disposição também, o médico barcelense decidiu, em 2015, criar uma consulta da dor, na Unidade de Saúde Familiar Lethes, em Ponte de Lima, a primeira na área dos cuidados primários de saúde. “A dor afecta tanta gente, achei que poderia dar outro tipo de resposta”, conta ao JB. E o feedback tem sido positivo: “Os doentes gostam de vir à consulta e têm melhorado. É uma recompensa muito boa para mim, porque acho que conseguimos, de facto, mudar um bocadinho o dia-a-dia destas pessoas que sofrem”.

O barcelense Raul Marques Pereira tem 37 anos e é natural de Alheira. É médico há cerca de 13 anos, com especialização em Medicina Geral e Familiar e na Medicina da Dor. 

Vamos falar de uma dor que persiste mais tempo do que o expectável, atinge, de acordo com dados que são conhecidos, um em cada três portugueses. O que é a dor crónica?

A dor crónica é essencialmente uma dor que persiste mais tempo do que o que seria expectável para a sua resolução. Em média, uma dor que dura mais do que três meses já é considerada uma dor crónica. Ou seja, uma dor de costas, uma dor de joelho, que esteja presente todos os dias ou quase todos os dias, ao longo de três meses, já configura uma dor crónica, que, por si só, consideramos uma doença, que afecta aquela pessoa e que tem de ser tratada exactamente dessa forma: não só minorar sintomas, mas tentar efectivamente tratá-la como uma doença por direito próprio.

De acordo com o estudo que faz e com a experiência que tem, o que pode provocar a dor crónica?

Há vários factores que são importantes. Por um lado, sabemos que um doente que é operado a uma anca ou a um joelho, se a dor não for bem tratada logo a seguir à cirurgia, se o doente não tiver com a medicação certa ou não a tomar como ela foi prescrita, há uma tendência para a dor cronificar, para continuar mais tempo do que o que seria desejável. Por outro lado, também acontece muito e vemos muito isso na consulta, doentes que têm dor de costas e andam de médico em médico, que fazem um tratamento aqui, um tratamento ali, e não têm um diagnóstico firme e seguro para a sua dor. Enquanto não houver um bom diagnóstico e um bom tratamento inicial, há sempre uma tendência para estas dores continuarem por muito mais tempo. Isto acaba por desenvolver alguns quadros de ansiedade e depressão, porque as pessoas ficam bastantes nervosas por não poderem trabalhar, falando de pessoas em vida activa, ou por não poderem ter uma vida normal e tudo isto acaba por ser uma bola de neve, que perpetua a dor. O que tentamos fazer é mesmo identificar estes problemas o mais cedo possível, porque sabemos que, quanto mais cedo tratarmos correctamente a dor, mais fácil se torna que o doente saia deste ciclo vicioso e que consiga ter, de novo, maior qualidade de vida.

Já percebemos a importância do diagnóstico, tão cedo quanto possível. Como é feito?

Em primeiro lugar, temos de perceber há quanto tempo a pessoa tem dor. Na nossa consulta, os doentes são enviados essencialmente pelos médicos de família, que percebem que aquela pessoa está com dor há mais tempo do que o que seria expectável. Muitas vezes, são pessoas que não respondem à primeira medicação e a pessoa vai-se queixando, de consulta em consulta. Aí, há a questão temporal. Depois, por vezes, tanto por parte do médico como por parte do doente, vamos deixando andar, até que a dor chega a um ponto que se torna insuportável e só aí é que as pessoas procuram uma ajuda um pouco mais diferenciada. É muito importante perceber a questão temporal, perceber o que já foi feito para tratar a dor e o que funcionou e não funcionou e, acima de tudo, ter um bom diagnóstico, perceber muito bem qual foi a causa da dor. 

“Adaptar muito bem a nossa abordagem de doente para doente”

E o tratamento acaba por ser feito consoante as características e a dor de cada pessoa…

Exactamente. As dores, por muito parecidas que sejam, e eu dou sempre o exemplo da dor de costas, que é das dores e das queixas mais comuns dos doentes, a dor de costas pode ser causada por 50 coisas diferentes. Os sintomas podem ser semelhantes de pessoa para pessoa, mas terem diagnósticos, problemas de base muito diferentes. E o grande segredo, na dor, é, por um lado, perceber isso e, depois, adaptar a terapêutica a cada um. Não podemos tratar da mesma maneira uma pessoa que tem uma vida activa e que quer muito ir trabalhar ou uma pessoa que tem muitos problemas de saúde e que não tolera certo tipo de medicação. Esta adaptação individual também faz com que haja muita diferença nos resultados. Não podemos avaliar nem tratar os doentes todos da mesma maneira, temos de tentar adaptar muito bem a nossa abordagem de doente para doente.

Como é que os utentes, numa consulta, lhe explicam a dor que têm ou a percepção que têm da dor?

Antes de iniciar a consulta propriamente dita, fazemos uma série de questões aos doentes, com escalas internacionais, que estão validadas, que avaliam várias coisas, por exemplo, qual foi a dor máxima que o doente teve na última semana, ou quanto isso o impediu ou não de dormir ou de fazer as suas actividades do dia-a-dia, e vamos pontuando, ou seja, temos uma pontuação para essas escalas. Quando achamos que o doente pode estar deprimido ou ansioso, também fazemos questionários específicos para a depressão e para a ansiedade. Isto permite-nos que, depois, de consulta para consulta, tenhamos uma pontuação que possamos comparar. Não é só aquilo que o médico ou o doente acha, temos valores e, portanto, dali a uma mês – por norma, vemos o doente uma vez por mês, até ele estar bem controlado com a dor –, conseguimos comparar os valores e, aí, dá-nos uma ideia muito mais fiável daquilo que a pessoa sente e da avaliação que fez. Tentamos fazer uma avaliação muito completa e muito quantitativa, dentro daquilo que é possível, porque a dor tem sempre uma certa componente subjectiva, mas dentro do que é possível, tentamos avaliar o melhor possível, para depois termos um bom ponto de comparação.

De que modo é que vai percebendo que a dor crónica afecta a qualidade de vida das pessoas?

Sabemos que um em cada três portugueses sofre de dor crónica, é muita gente. O que notamos é que as pessoas precisam de se sentir acompanhadas e precisam de sentir – e daí a existência de uma consulta específica – que há alguém que se preocupa com a dor delas. Muitas vezes, não há tempo, nas consultas normais, digamos assim, do dia-a-dia, para falar com os doentes sobre isto e o tempo vai passando e as pessoas ou estão de baixa ou estão a fazer algum tratamento que não é tão eficaz assim. Passado alguns meses, se não se começar a resolver a situação, criam-se aqui muitos quadros quase de desespero, desânimo, tanto nas pessoas activas como nas pessoas menos activas. Mas, nas pessoas activas, vemos muito isso, elas querem ir trabalhar e não conseguem e, portanto, terem aqui uma resposta rápida, em que tentamos, de mês a mês, ir resolvendo o problema, traz-lhes outra tranquilidade e outra vontade de continuarem a lutar contra este problema. Porque aqui, o compromisso do doente em lutar e não desistir também é muito importante.

É possível traçar um perfil de quem sofre de dor crónica?

A dor crónica é transversal a todas a população. No entanto, na nossa consulta temos dois grandes grupos de doentes: por um lado, o doente em idade activa, mas que sofre com dor crónica e fica incapacitado ou com limitações severas para o trabalho e, por outro lado, o doente mais idoso, que perde qualidade de vida por causa da dor e que não pode ter uma fase mais sénior da vida com a qualidade que merece. 

Em 2015, criou em Ponte de Lima a consulta da dor. Já há pouco foi adiantando a questão, quanto à receptividade. O que o motivou a criar este projecto direccionado para doentes com dor não controlada e incapacitante?

Esta consulta nasceu duma necessidade de dar resposta a um número muito grande de pessoas que sofrem com dor. Estes doentes precisam, pelas características muito especiais da dor crónica, de uma consulta específica para avaliação e tratamento da dor. Só desta forma é que se consegue ter tempo para uma consulta estruturada e que represente uma mais-valia no tratamento destes doentes. Os doentes são enviados a esta consulta pelo seu Médico de Família, quando este entende que o doente necessita de ser seguido numa consulta específica de dor. O que notamos é que as pessoas que sofrem com dor valorizam este acompanhamento específico por perceberem que há um foco único no problema da dor, que, muitas vezes, é o problema de saúde que mais lhes retira qualidade de vida.

“Os médicos cada vez sabem mais de dor e tratam melhor os seus doentes”

Faltam mais unidades ou consultas de dor em Portugal?

Temos muitos colegas que, no fundo, querem e estão a começar a replicar este modelo que iniciámos em Ponte de Lima. Estamos a tentar ajudá-los, também estamos a tentar fazer formação e a colaborar com outras entidades que fazem formação nesse sentido. Para mim, sem dúvida, o futuro passa por aqui, passa por a maior parte dos centros de saúde, pelo menos, os maiores, terem uma consulta dedicada à dor e, depois, os casos que, por algum motivo, não se conseguirem resolver, serem encaminhados para as consultas hospitalares, que têm outras armas e outras técnicas que aqui nem sempre conseguimos ter. Mas, numa primeira abordagem, um médico de família que tenha formação nesta área consegue fazer a diferença na vida de muitas pessoas e consegue libertar estas pessoas de uma série de consultas, incapacidades para o trabalho e tratamentos, que, às vezes, não são eficazes e consegue devolver muita qualidade de vida a estas pessoas. É por isso que nós lutamos aqui, em Ponte de Lima, e, de facto, a nossa consulta está a funcionar muito bem para os nossos doentes.

Os médicos de família estão consciencializados para esta realidade?

Acho que, nos últimos anos, fruto de muito investimento, de muita gente dedicada à dor, os médicos de família estão mais consciencializados para isto e cada vez querem fazer mais. Haverá algumas lacunas na formação, que têm sido cada vez mais preenchidas, e as pessoas cada vez sabem mais de dor e tratam melhor os seus doentes. Há muito para fazer, claro que sim, há muita formação para dar, muito para estudar, muito para explicar, mas acho que, pela evolução que tivemos, por exemplo, nos últimos cinco anos – e vejo os meus colegas mais jovens, que estão cada vez mais interessados –, podemos dizer que, num futuro próximo, vamos ter pessoas muito bem preparadas para tratar a dor a nível nacional e os nossos doentes vão ganhar muito com isso.

Em finais de Março, realiza-se a 1.ª Masterclass de Dor do Minho, de que é consultor científico. Entende que este é um assunto que vai gerando mais interesse e também estudo por partes dos académicos e profissionais?

A Masterclass de Dor do Minho vai realizar-se a 30 de Março, em Braga, e é dirigida primordialmente a Médicos de Família e Enfermeiros dos Cuidados de Saúde Primários. Este é um dos primeiros eventos em dor em Portugal, especialmente dedicado aos profissionais que trabalham nos Centros de Saúde, precisamente porque há cada vez mais interesse em debater a dor neste contexto. Com este evento, o nosso objectivo é levar a cabo uma formação global em dor e colocar a temática da dor em discussão em diversas mesas redondas. Temos tido uma adesão muito grande e já contamos com mais de 150 inscritos, o que me parece demonstrar o grande interesse que existe actualmente em relação a este tema.

Ainda há pouco disse, que, por vezes, as pessoas ficam muito ansiosas e até em estados mais depressivos. Até que ponto é preocupante?

Este é um dos pontos mais importantes na avaliação da pessoa com dor. Se a dor crónica não for adequadamente tratada vai, muitas vezes, criar estados de tristeza profunda ou de preocupação marcada com o futuro. É muito importante acompanhar as pessoas que sofrem com dor também nestes aspectos e tratar o melhor possível os estados depressivos ou de ansiedade para que possa haver uma melhoria global da pessoa.

A eutanásia é um assunto frequentemente na ordem do dia e vai motivando também reflexões e posições várias. Já foi confrontado com doentes com uma vontade, consciente, de serem eutanasiados?

Acontece, felizmente com pouca frequência, observar-se doentes que, pela gravidade da dor, nos dizem que não querem mais viver desta forma e que, se a dor não for aliviada, preferem não continuar a viver. Nestas situações, é muito importante despertar novamente a esperança e explicar que temos vários métodos para o alívio da dor e que, com o tratamento e acompanhamento adequado, se conseguem taxas de melhoria da intensidade da dor muito significativas. Felizmente, tem sido possível ajudar estas pessoas, colocando a dor num patamar que se torna aceitável para uma qualidade de vida que merecem.

A dor crónica é curável? Ou a eutanásia, sendo permitida, poderia ser uma solução?

A dor crónica é uma doença que tem que ser controlada mais do que curada. Isto é, muitas vezes não é possível curar a causa de dor, mas sim aliviar a sua intensidade para um patamar tolerável. Na minha perspectiva, a eutanásia não deve ser considerada como uma hipótese para a abordagem da dor, mesmo da dor muito intensa, uma vez que, actualmente, temos muitas armas ao nosso dispor, que permitem aliviar o sofrimento destes doentes. Tem sido muito gratificante observar doentes que, depois de iniciarem os tratamentos mais adequados, apresentam uma mudança evidente da sua atitude perante a vida e voltam a ganhar a vontade de viver.

Há pouco disse que o futuro, pelo menos, nos centros de saúde, poderá passar por estas consultas da dor. Entende a dor, este tratamento da dor, como um dos maiores desafios da medicina?

Sim, sem dúvida. A dor é uma área que tem crescido cientificamente muito e tem ainda muito mais para crescer. É um dos maiores desafios terapêuticos, porque envolve o uso de alguns fármacos, que os médicos, às vezes, têm algum receio de prescrever, porque não têm tanta experiência. Temos uma margem de crescimento tão grande, que tudo o que vier vai ser muito positivo. Enquanto noutras áreas já quase atingimos o limite daquilo que podemos fazer pelos doentes, na dor ainda há muito para fazer, porque o crescimento na ciência tem sido muito grande e agora é preciso trazer isso para a parte clínica, para o dia-a-dia dos médicos e dos doentes. Acho que estamos numa fase que é muito interessante e que, de facto, nos pode até pôr no mapa como um país muito mais preparado para lidar com estes problemas dos doentes.

*Foto: Eduardo Morgado/JB

[Publicado em “Jornal de Barcelos”, edição de 6 de Março de 2019]

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