A 25 de abril de 1974, Portugal acordava em alvoroço, com uma revolução na rua. “Eu sabia lá o que era o golpe de estado. […] Nós nem sequer sabíamos dizer que era uma revolução”, confessa José Araújo. Tinha, na ocasião, 24 anos e estava na Força de Fuzileiros do Continente, quando, na noite de 24 de abril, o inesperado – porque tudo fora “feito no segredo dos deuses” – aconteceu.
“Estávamos todos deitados, a dormir, sossegados, quando há o levantamento obrigatório e há que saltar tudo para o Terreiro do Paço”, recorda José Araújo. Lá chegados, foram “uns para a Rádio Renascença, outros para a António Maria Cardoso, outros foram para Caxias, outros para o Quartel do Carmo e por aqui, por ali, por acolá”. José Araújo integrou a força que seguiu para a rua António Maria Cardoso, onde ficava a sede da Direção-Geral de Segurança (DGS), a antiga PIDE. “Disseram-nos: ‘Vamos guardar a PIDE, para não fugirem. O que é do regime anterior vai cair tudo”.
Embora se fale de uma Revolução “sem sangue”, a História dá-nos conta de que não foram só flores. Os agentes da DGS/PIDE abriram fogo sobre a população que cercava a sede, causando quatro mortes de civis e dezenas de feridos. É esse, acreditamos, o episódio que relata ao Encontro de Gerações José Araújo, utente do Centro de Dia da Misericórdia de Barcelos, que, na altura, integrava, então, a força de Fuzileiros do Continente, apoiada por uma força do Regimento de Cavalaria n.º 3 de Estremoz, que consumou a ocupação cerca das 09h do dia 26 de abril. “Houve um golpe de mão lá dentro. Eu, um oficial e um sargento fomos os primeiros a entrar, com ordens reservadas que, se não aparecêssemos em x minutos à janela, era para invadirem logo aquilo”, lembra. Mas não foi necessário: no interior, “ninguém reagiu”.
À Revolução, José Araújo chama “festa do medo”, porque “havia muita alegria, mas encoberta, porque as pessoas não sabiam se se haviam de manifestar, se haviam de chorar”. Sobretudo ali, onde, conta, um incidente com a polícia, cuja passagem estava a ser barrada por populares, culminou nas tais quatro vítimas mortais da revolução.
“Havia a esquadra da polícia ali à beira. […] A polícia sai da esquadra, entra no carro-patrulha e vai para avançar, mas ninguém lhe abria caminho. E os polícias, com aquela brutalidade deles, dispararam para o ar. Os rapazes do exército que lá estavam, cheios de medo, não tinham instrução nenhuma, ouviram tiros e dispararam. Passados minutos, estou deitado ao comprido das escadas e há uma bala que bate no topo da escada e levanta um pedaço. E eu: ‘Olha estes a brincarem com quem está manso e quieto’”, detalha. E disparou também.
A revolução vista por um trabalhador
Mais a norte, na cidade invicta, José Dias não tinha percebido, no imediato, o que acontecera na capital. Tem, hoje, “76 anos feitos” e está internado na Unidade de Cuidados Continua dos Integrados de Santo António. “Homem das sete profissões”, assim se auto denomina, quando se deu o 25 de Abril, trabalhava às mesas, concretamente, no Café Dragão, “ali junto às Antas”. “Fomo-nos apercebendo das coisas. Soubemos depois, através da televisão, ainda a preto e branco, que havia, então, a Revolução dos Cravos”, explica, reflete e acrescenta: “Foi boa, não é?, como sabe. Principalmente, porque acabou com a guerra. Muita gente esquece-se que a parte principal era acabar com a guerra, para deixar de ir para lá a juventude”. Anos antes, José Dias tinha estado “26 meses” no Ultramar, em Angola.
Voltando a 1974, a trabalhar na indústria hoteleira, no contacto com diversas pessoas, fala do medo com que se vivia: “O antes era as pessoas estarem caladinhas, não é? Com medo que estivesse ali algum bufo que pudesse bufar à PIDE. Eram as pessoas amarradas. Aliás, não se podia discutir nada, porque o pessoal não se apercebia sequer do sistema em que estava. E a gente só depois é que começou a abrir os olhos”.
José Dias revela que não tinha receios ou preocupações nos contactos que estabelecia: “Nunca tive. Por acaso, nunca me resguardei disso. Não tinha grandes discussões políticas com ninguém. Não havia esse problema. A não ser que estivesse alguém lá no café, que estivesse a puxar conversa para me levar para determinados assuntos”. Já o seu pai, anos antes, em Braga, fora forçado a “pirar-se”. “O meu falecido pai andava ali no meio e, certa vez, começou a ouvir tiros e teve de dar à sola. Era no tempo do General Humberto Delgado [então líder da oposição ao Estado Novo], quando começaram a aparecer os cartazes com o general, fardado, colados nas paredes, o meu pai deve ter sido confundido com algum colador dos cartazes. Era eu miúdo, ainda”, lembra José Dias.
50 anos depois… Ideais e memórias
Completam-se, este ano, 50 anos da Revolução dos Cravos. Com o 25 de Abril, eis um ponto final na censura, a libertação dos presos políticos, a ‘promessa’ de liberdade, da democracia.
Conceição Santos, residente no Lar da Misericórdia, recorda, com entusiasmo, como, anos antes, não perdia um desfile, por ocasião do 25 de Abril. “Começava na estátua do Bombeiro e seguia-se por aquela avenida abaixo, pela beira das fábricas… Era muito bonito”, evoca. Mas não se ficava por Barcelos: “Ia eu e o meu marido, o meu filho mais velho, que tem agora 50 anos, às cavalitas, íamos para Braga e para onde houvesse celebração do 25 de Abril, nós estávamos lá”.
Operária fabril, recorda tempos difíceis de “fome” e “medo”. “Lutei muito. Lutei muito e passei muito. A mulher não tinha direito como o homem, nada. Nós, mulheres, éramos umas escravas. O 25 de Abril foi bom para tudo. […] Antes, era fome e medo. A PIDE estava em todo lado. Não se podia conversar como estou agora consigo. Nem nas fábricas”.
Por cá, em Barcelos, quando se soube o que acontecera em Lisboa, “foi uma festa”. Era “O dia inicial inteiro e limpo/ Onde emergimos da noite e do silêncio/ E livres habitamos a substância do tempo”, como escrevera Sophia de Mello Breyner Andresen.
[Publicado em “Encontro de Gerações”, edição n.º 59, de abril de 2024]